segunda-feira, 4 de julho de 2011

Matinês com Jorge Amado por Guilherme Sarmiento

Jorjamado no cinema 

 Não será sem alguma decepção que se concluirá a busca por Jorge Amado no cinema baiano.[1] Caso a procura seja na superfície dos títulos, somente atentando às adaptações cinematográficas mais óbvias, o pesquisador ficará um tanto intrigado com a ausência de filmes baseados nos romances do escritor, ainda mais quando se mede sua importância para o povoamento deste universo ficcional chamado Bahia. Não há como imaginá-lo fora da concepção amadiana. Num sentido mais profundo, pode-se ver no realismo social presente nas ficções baianas da década de 1960 uma tradução visual tardia de tudo aquilo que o regionalismo literário fizera desde 1930.  Porém, estas referências indiretas somente colaboram para expor o silêncio em torno de um nome de extrema relevância para a construção da “baianidade”. Certamente expressa algum tipo de diferença. Ela pode ser interpretada a partir de um documentário singular, onde o tradicionalismo das letras encontrou-se com o idealismo da imagem: Jorjamado no cinema, de Glauber Rocha.

Na década em que o documentário foi feito, a obra de Jorge Amado renascia para a sétima arte.  Nelson Pereira dos Santos filmou Tenda dos milagres; Marcel Camus, Otália da Bahia (baseado em Pastores da noite), e Bruno Barreto, Dona Flor e seus dois maridos. Neste sentido, Jorjamado no cinema contribuiu muito pouco para que esta relação bem sucedida transparecesse na tela. Este pequeno e imperfeito documentário torna-se mais revelador quanto mais se furta a oferecer tudo aquilo que promete o seu título. Somente se Glauber fosse considerado a personificação mesma do cinema, algo da proposta se realizaria. Diante das provocações glauberianas, o escritor seria introduzido na vertigem das imagens cinematográficas. 
 Enquadrar Jorge Amado, entretanto, não equivalia a adaptar suas ficções literárias para o cinema. No momento mais revelador do filme, o escritor levantou-se de sua poltrona e devolveu uma pergunta que guardava certa maldade por seu caráter intimidatório. Quis que o amigo cineasta se comprometesse publicamente ao perguntar quando Glauber filmaria Terras do sem fim.

 A relação de Glauber Rocha com o clássico de Jorge Amado datava de 1952. Neste ano, escreveu para o tio algumas impressões sobre o livro, que desde então se mostraram divididas:
 ”Li Terras do sem fim de Jorge Amado, e achei mais do que ‘realista’. A sua linguagem pode-se dizer quase imoral. Virgílio, Margot, Ester, Juca Badaró são sem dúvida personagens que cativam o leitor, mas nunca como Eugênio, a Olívia, a Dora e o Simão, a Eunice e todos os outros personagens de Veríssimo em Olhai os lírios do campo”.[2]

  “A sua linguagem pode-se dizer quase imoral”. Um ascetismo sutil, talvez motivado pela cultura protestante, impedia o Glauber adolescente admirar por completo a linguagem chã do escritor conterrâneo. Outros impedimentos surgiram, e mesmo se agravaram, após o amadurecimento intelectual da liderança cinemanovista, cujo estilo alegórico pouco falava ao realismo sensualista que remodelou a arte engajada de um dos escritores baianos mais célebres. Jorge Amado nunca fora um autor admirado incondicionalmente nem por Glauber nem pela geração de cineastas baianos surgida no início da década de 1960.

A Grande Feira

  Quando Jorge Amado deu uma guinada na carreira, em 1958, privilegiando as personagens femininas e a representação de uma Bahia solar, mística e sensual, surgiram os primeiros sinais do Ciclo do Cinema Baiano. Ele já era um escritor de fama internacional, traduzido na Europa, viajado, e com alguns romances adaptados para o cinema. Terras do sem fim recebeu, ainda em 1948, uma versão cinematográfica dirigida pelo americano Eddie Bernoudy. Rossellini, o expoente do neorrealismo italiano, sondava-o para filmar Jubiabá. Porém, se o cenário exótico e a narrativa fluida do escritor atraíam os estrangeiros, os jovens cineastas baianos, em suas experiências ficcionais, pareciam caminhar em sentido oposto ao colorido exuberante de Gabriela, cravo e canela.  

 Neste período, Oscar Santana e Roberto Pires finalizavam o que então se tornaria o primeiro longa-metragem realizado na Bahia: Redenção. Com uma natureza viril muito pouco simpática às suaves exalações da personagem de Amado, a fotografia conteve-se em sombras densas, quando muito enquadrando coqueiros plantados na beira de abismos psicológicos. Também fugiu aos apelos de uma representação regional o curta O pátio, do estreante Glauber Rocha, cujo jogo abstrato, geométrico, suspendeu os amantes protagonistas acima das ladeiras, dos sobrados, dos becos inspiradores das obras mais marcantes do escritor baiano.

Certamente a nova geração de cineastas surgida no final da década de 1950 procurava um ponto neutro, elaborando uma forma fria antes de se imiscuir no caldo da cultura popular que lhe daria a feição revolucionária. Queriam fugir aos exotismos fáceis promovidos por filmes como as produções brasileiras Sob o céu da Bahia, de Ernst Rechenmacher, exibida em Cannes em 1956, Matemática zero, amor dez (1958), de Carlos Hugo Christensen, ou aos tabuleiros dançantes da animação Los três amigos (1944), da Disney, todos filmes com cenas “ilustrativas” da paisagem e da cultura baianas. Em 1960, antes que o francês Marcel Camus lançasse Os bandeirantes, Glauber Rocha e Walter da Silveira desdenhavam das tentativas do estrangeiro em retratar a realidade nordestina, utilizando-a somente como pano de fundo para seus exercícios de estilo.

 Mas esta visão estereotipada mudaria ainda naquele ano. O paulista Trigueirinho Neto salvou em parte a Bahia com seus conhecimentos neorrealistas adquiridos no Centro Sperimentale di cinematografia, de Roma, ao contar a história de Antônio e seus amigos, jovens desocupados que cresciam à margem da euforia econômica do período. Em seu retrospecto sobre o cinema baiano, o crítico José Umberto diria que
“Bahia de todos os santos, de Trigueirinho Neto, foi um beijo superficial no espírito de Jorge Amado, que por sinal talvez seja o mais baiano dos artistas baianos e um sacrificado quando transposto para o cinema”.[3]

 Esta observação não deixa de ser emblemática quando se observa o descompasso existente entre a abordagem leve, picaresca, de livros publicados por Jorge Amado em 1960, como A morte e a morte de Quincas Berro D’água e Velhos marinheiros, e a Bahia existencialista criada por Trigueirinho. Nada era mais antiamadiano do que a perspectiva do mulato Antônio, perdido entre o engajamento sindical e a ancestralidade afro-brasileira, vagando sem um lugar onde forjar seu caráter de herói.
  O mesmo podemos dizer sobre a constituição estética e temática de A grande feira, que, junto com Barravento, tornou-se a obra emblemática do Ciclo do Cinema Baiano. Desde as primeiras críticas, ficou patente o diálogo velado do filme com a representação realista inaugurada por Amado na literatura. Walter da Silveira, em 26 de novembro de 1961, observou que:
“Se este já pode ser na Bahia um tempo de cinema e não apenas de literatura, 1961 corresponderá menos a Jorge Amado e Os velhos marinheiros do que a Roberto Pires e A grande feira”.[4]

 Pode-se dizer que, para esta geração de intelectuais, A grande feira atualizava o que de melhor Jorge Amado havia produzido em sua carreira. Renovava o realismo cru, de temática social, que o fizera conhecido na década de 1930, salvando-o da magia festiva característica de suas obras escritas na década de 1960. Só se pode comparar o universo de Maria da Feira e Chico Diabo tendo em vista os desvalidos de Suor (1934) e Capitães de areia (1937). Mas não era o caso das obras amadiadas cunhadas na década de 1960:
 ”Quincas Berro D’água estava nos seus melhores dias. Um entusiasmo incomum apossara-se da turma, sentiam-se donos daquela noite fantástica, quando a lua cheia envolvia o mistério da cidade da Bahia.(…) Era uma noite de encantamento, toques de atabaques ressoavam ao longe, o Pelourinho parecia um cenário fantasmagórico”.[5]

  Nada soaria mais incômodo à defesa de uma arte social, minimamente engajada, do que o espontâneo hino à amizade vagabunda cantado pelo defunto Quincas Berro D’água e seus companheiros, num delicioso e alienante mormaço noturno. Sua balbúrdia desordenada em prol da alegria evitou adentrar a atmosfera de dissolução eminente da Feira de Água dos Meninos. Para Amado, no momento em que o cinema baiano despontava, a liberdade de se viver plenamente a vida constituía-se em si mesmo um projeto revolucionário.

Quincas Berro d’Água

  Quarenta anos depois dos dilemas ideológicos que tornaram Jorge Amado um autor estranho ao Ciclo do Cinema Baiano, Sérgio Machado adaptou A morte e a morte de Quincas Berro d’Água. Este caminho cedo ou tarde seria trilhado pelos cineastas baianos da contemporaneidade, já que todos os impeditivos de uma livre fruição do imaginário amadiano ruíram. De fato, os diretores da retomada identificam-se muito mais com o carpe diem do escritor do que com o cogito ergo sum cinemanovista, e logo isto se fez patente.
 A relação de Sérgio Machado com Jorge Amado começou cedo. Em seu curta- metragem Troca de Cabeça, realizado em 1995, soube utilizar de um catálogo expressivo de tipos baianos para compor uma história de mistério e magia. Um pastor evangélico, um mendigo e uma vendedora de acarajé prediziam o fim trágico do protagonista. O modo leve e descompromissado com que filmou as personagens nas ruas chegou até os olhos de Jorge Amado. Este encontro selaria o futuro profissional do cineasta. Portanto, ao filmar Quincas Berro d’Água após se consagrar com Cidade baixa, Machado estaria não somente redimindo o escritor para a cinematografia baiana, mas prestando uma homenagem a um padrinho, a alguém importante para sua carreira artística.

Quincas Berro D’água é um filme com muitos problemas, sendo o mais grave deles a literalidade do roteiro. Espera-se certo ar literário em filmes adaptados de romances e contos, mas, neste caso, a liberdade encontrada por Machado para modificar a trama à vontade não a tornou menos expositiva, muito pelo contrário. Comparando a película com o livro, fica-se a estranha impressão de um produto muito mais verbal do que a própria literatura. A novela soa extremamente cinematográfica diante de sua adaptação audiovisual.  Isto porque se optou por transferir uma voz em off ao defunto, transformando-o num híbrido fantoche Machado-amadiano. Machado, de Machado de Assis, não de Sérgio Machado. Um Brás Cubas baiano.
 Talvez a intenção do diretor fosse equivaler literariamente Machado de Assis e Jorge Amado através do estilo. Porém, tais analogias forçadas obstruíram a leveza narrativa de Quincas Berro d’Água, aproximando-o de uma natureza introspectiva totalmente alheia ao universo atuante do autor de Capitães de areia. Aliás, em vida, Amado sempre confessou maiores afinidades com José de Alencar, pela potência de imagens exóticas, coloridas. O acabamento psicológico forjado em romances como Memórias póstumas de Brás Cubas era-lhe estranho ao  temperamento.     
                                     
Quincas Berro D’água no mundo ao qual com tantas manhas renegara, enjaulando-o para o olhar satisfeito do espectador médio. Faltou certa carga de engajamento despudorado à vida para tornar palpável o incômodo imoralismo da personagem.         

 Tendo um projeto impecável em mente, Sérgio Machado desconectou-se do essencial. Se estivesse livre para aceitar a imperfeição, seria muito mais fiel a Jorge Amado. Seu legado espiritual chegaria ao ano dois mil encarnado em um filme cujo princípio elementar fosse o gozo da liberdade. Com ou sem ideologia.

Guilherme Sarmiento é cineasta, Doutor em literatura brasileira e professor de Dramaturgia do curso de cinema e Audiovisual da UFRB. Realizou, junto com outros quatro diretores, o primeiro longa-metragem universitário, Conceição ou autor bom é autor morto, e foi um dos coordenadores do primeiro Festival Brasileiro de Cinema Universitário, realizado na UFF.

Notas:

[1] Interessante perceber a relação mais estreita dos documentários baianos feitos na época com o imaginário amadiano do que com os filmes ficcionais. Destaque aqui para os curtas de Alexandre Robatto Filho e Um dia na rampa, de Luís Paulino dos Santos, onde estava previsto a inclusão de um texto de Amado, lido pelo próprio escritor, em off. 
[2] BENTES, Ivana (org). Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.79
[3]  UMBERTO, José. “Por um cinema baiano”. Revista Filmecultura. N.19, pp.32-35.
[4] DIAS, José Humberto (Org). Walter da Silveira – o eterno e o efêmero. Salvador: Oiti, 2006, p.169.
[5] AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro d’Água. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 83.

BIBLIOGRAFIA
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro d’Água. Rio de Janeiro: Record, 2003.
BENTES, Ivana (Org). Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 
DIAS, José Humberto (Org). Walter da Silveira – o eterno e o efêmero. Salvador: Oiti, 2006.
UMBERTO, José. “Por um cinema baiano”. Revista Filmecultura. N.19

Fonte: Site da UFRB

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