O pintor Carybé com seu olhar de lince, pronto a captar os percalços do cotidiano |
Carybé, filho espiritual de Mãe Senhora e obá de Xangô.
E assim, cem anos se passaram desde seu nascimento, e, assim tão de repente, cem anos se passaram...
E é pelo centenário de seu nascimento que procuramos reviver muitos momentos da vida do artista, com sua alegria de moleque, sempre aprontando alguma das suas muitas peripécias, subindo e descendo as ruas e ladeiras da velha Cidade da Bahia, tão amada por ele, tão representada e recriada em sua grande obra plástica e nos textos que também escreveu.
Ele nasceu Hector Julio Paride Bernabó, lá em Lanus na Argentina, mas aqui renasceu como Carybé. Com o toque mágico do seu lápis, fazia surgir um mundo de coisas com a agilidade de quem "rouba" da realidade, para não perder o instante nem deixar de registrar o que os olhos acabavam de apreender. Com a palheta de pintura e partindo da Bahia de seu tempo, fez telas memoráveis habitadas por um povo vivo, colorido, insinuante, andando sem pressa ao compasso ritmado, como se ouvisse o tam-tam dos tambores ancestrais.
Da sua obra surgia a atmosfera de uma Bahia cheirando ao azeite de cheiro dos tabuleiros de acarajé das pretas gordas, mas também exalava incenso e mirra das centenárias igrejas do Terreiro de Jesus, na celebração das missas durante as manhãs luminosas da cidade. E quando a noite caía, era o toque dos atabaques que vibrava nas terras longínquas habitadas por deuses do outro lado do Atlântico.
Sua lembrança fará sempre parte das nossas vidas. Sua alegria, seu olhar de menino curioso e todas as coisas geniais que você fez, como sua extensa obra, seus murais narrando a vida baiana - incorporando índios, negros e, por que não?, os brancos também, portugueses, colonizadores - serão sempre uma grande lição de brasilidade e de conhecimento da nossa história. São muitas as suas obras. Todas elas são mesmo uma grande lição de arte, de maestria, de intimidade e de um passado fascinante.
Como poderemos esquecer os desenhos das Setes Portas da Bahia, a acuidade dos registos das festas e da vida da terra, da grande Feira de Água de Meninos, do Mercado Modelo com sua Rampa povoada pelos saveiros do Recôncavo e pelos atlantes negros carregando seus fardos, da Lavagem da Igreja do Bonfim, da Pesca do Xaréu, do Presente de Iemanjá? Em todos esses momentos ele foi mais que fiel, ele foi aquele cuja síntese dos traços expunha a vida, que apesar de dura, era cheia de graça.
Como não recordar as belas ilustrações e capas de muitos livros e discos, esquetes para ballet ou para o famoso filme de Lima Barreto - Lampião, o Rei do Cangaço? E os belos e ágeis desenhos, vivos, humanos, expressivos, estampados nas páginas dos romances de Jorge Amado, Mario de Andrade, Gabriel Garcia Marques, Antônio Olinto, Vasconcelos Maia, Odorico Tavares, Rubem Braga, entre muitos e muitos outros?
Assim é a obra desse artista gigante, com seu olhar de lince pronto a captar os percalços do cotidiano, as vicissitudes desse cenário de sonhos, onde se misturam alegrias, desencantos, realidades, construídos não sei por que, ou por quem, talvez por Deus ou mesmo pelo diabo.
O certo é que um dia por aqui chegou um gringo, que desta terra se apoderou e se tornou baiano, soteropolitano, e se fez apaixonado e em estado de graça por tudo que via e tocava.
Para seu grande prazer estético, para sua reinvenção, apreendeu cenas e mais cenas, um cabedal interminável de grande obras, falando de verdades e mentiras gloriosas, de cores quentes de luzes intensas, azuis profundos, céu e mar, cidade, ruas, casas, sobrados, palácios, palacetes e muitas igrejas. Viu também homens e mulheres nuas, sensuais deusas profanas, mestiças, brancas e negras, gordas e esguias, espiritualizas pelos santos brancos e deuses negros - guerreiros, caçadores, donos das ervas, das esquinas e das encruzilhadas. Tudo isso era muito mais do que a realidade: era a grande Mãe Negra espirrando do seu grande ventre tentações e invenções.
Carybé foi um mágico de muitas artes. Suas muitas incursões artísticas tinham sempre uma nova provocação, um novo desafio, ora pela monumentalidade dos grandes muros, ora pela união de diferentes materiais, ora pela forma como tratava os entalhes de madeira à semelhança da ourivesaria. Do vidro ao azulejo, da cerâmica ao metal, da pintura, da pedra, do bronze ao cimento, o certo é que ele harmonizava um grande quebra-cabeça com diferentes técnicas, materiais, formas e conteúdos. Ele era mesmo um construtor obstinado. Quantas vezes suas mãos não ficaram com chagas abertas em feridas vivas, sem nunca impedi-lo do fazer diário da sua obra? Foram difíceis momentos de sacrifícios à arte, do artista no seu trabalho como um passo adiante na sua criação.
Mas, ao celebramos o talento do nosso Carybé nesta homenagem ao centenário de seu nascimento, temos que lembrar a característica multifacetária de sua personalidade.
Houve um homem, amigo afetuoso, colecionador de muitos amigos, um curioso por saber das coisas da sua religião, que adotou por opção. Por ela fez muitos e muitos registros, fez pinturas, gravuras e a sua obra máxima: A Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia, com ensaios de Jorge Amado, Waldeloir Rego e Pierre Verger.
Foi um devoto fiel e, por isso, era comum encontrá-lo nas Festas de Dona Olga do Alaketo, da Casa Branca, no Gantois. Mas sua paixão mesmo era o templo do Ilê Axé Opô Afonjá. Ali ele voltava aos tempos pretéritos de Dona Maria Bibiana do Espírito Santo - Mãe Senhora -, da festa de sua Oxum Muiwá, do encontro memorável dos Obás de Xangô, reunidos na atmosfera do terreiro do São Gonçalo: Jorge Amado, Pierre Verger, Sinval e Vivaldo Costa Lima, Rubim de Pinho, Tibúrcio Barreiro, Waldeloir Rego. Havia ainda Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Camafeu de Oxóssi e muito mais gente que ia ao chamado daquele templo consagrado a Xangô.
Um dia, não sei quando, ele se fez um monge no seu atelier para fazer a grande empreitada, a mais desejada da sua vida, O Grande Mural dos Orixás, para a agência da Avenida Sete de Setembro do então Banco da Bahia. A encomenda vinha de um velho amigo das artes: Clemente Mariani.
De posse de goivas e formões, mergulhou com obstinação nas pranchas de cedro e traduziu com mestria e refinamento as histórias religiosas para entalhar os baixos relevos, as incrustações, os apliques, as colagens, para dar vida real a cada Orixá, com sua indumentária, seus atributos, seus bichos de devoção. Assim, como num passe de mágica, surgiu ali, pronto, deslumbrante e de alma tranquila. Estava criado O Grande Mural dos Orixás. A grande Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia se materializava pelas mãos de um dos mais fervorosos devotos da religião africana da Bahia.
E é com parte desse grande mural que o Museu Afro Brasil se associa às comemorações do ano do Centenário de Carybé, como reconhecimento ao seu grande talento e ao legado artístico e histórico deixado por ele nos seus muitos anos de vida devotados à arte, à criação e à invenção mítica da cidade escolhida por ele para o seu grandioso legado: a história das gentes da Velha Cidade da Bahia de Todos os Santos.
Obrigado Mano Velho Carybé, por tudo que você criou.
Fonte: Terra Magazine
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