“Em 1937 Capitães da Areia foi censurado e depois queimado em
Salvador”, disse minha professora de português, quando eu estudava no Ginásio
Amazonense Pedro II, em Manaus.
A frase da professora aumentou a curiosidade dos estudantes
por este romance, um dos livros obrigatórios do curso de literatura brasileira.
Por sorte, a leitura deu prazer aos jovens leitores. Agora, ao reler a história
dos meninos do trapiche, encontrei o mesmo deleite, mas com outro olhar: o
leitor de 1966 não é o mesmo de 2008.
É surpreendente a
atualidade dos temas de Capitães da Areia. O assunto e as questões sociais que
o livro explora em profundidade são, em larga medida, os mesmos da “cidade da
Bahia” e de muitas outras cidades, do Brasil e da América Latina. Lido hoje,
este romance ainda comove e faz pensar nas crianças desvalidas, nas crianças de
rua, nas crianças abandonadas, quase todas órfãs de pai e mãe, filhos da
miséria e do abandono. Atiradas à marginalidade, elas roubam e cometem outros
delitos para sobreviver. Detidas, são submetidas à humilhação, ao castigo, à
tortura.
A meu ver, este romance de
Jorge Amado antecipou de um modo lúcido e incisivo a vida das crianças que
esmolam nas ruas das cidades brasileiras. E essa é uma das mensagens mais poderosas
de Capitães da Areia.
Hoje, a violência urbana tem uma relação estreita com o tráfico de drogas,
enquanto os meninos desta obra de ficção furtam para sobreviver. Mas até certo
ponto, as raízes do problema são as mesmas: a ausência da família e da escola,
agravada pela vida degradante nas favelas e cortiços de tantas cidades.
Como ocorre em Jubiabá e outros romances de denúncia social,
Jorge Amado construiu um microcosmo ficcional. Em Capitães da Areia,
os personagens mais relevantes são meninos de 5 a 15 anos. Eles moram num
velho trapiche abandonado no cais de Salvador, a “Cidade da Bahia” que eles
tanto conhecem em suas andanças e aventuras de vagabundos. Nesta cidade hostil,
eles só podem contar com dois amigos: um padre e uma mãe-de-santo. Não há
traição entres os pivetes do bando. Tudo é regido por “uma lei e uma moral”,
por códigos de lealdade e solidariedade. O leitor acompanha a trajetória de
vida do Sem-Perna, um menino manco que se vale do defeito físico para ser
acolhido em casas de ricos, que depois serão assaltadas. Pirulito, “alto e
muito magro, cara seca e amarelada, com ar de asceta”, é uma criança devota que
coleciona imagens de santos e sonha em ser padre. Volta Seca, afilhado de
Virgulino Lampião, almeja entrar no cangaço para vingar a morte da mãe. João
José, o Professor – ladrão de livros e o único menino letrado –, lê histórias
de aventuras e desenha o rosto de pessoas para ganhar uns trocados. Gato, “o
elegante do grupo”, apaixona-se por uma prostituta, com quem mantém uma relação
duradoura; e o chefe dos Capitães, Pedro Bala, é filho de um líder de
estivadores, assassinado durante uma greve dos doqueiros. Os capítulos breves
lembram os de um folhetim, em que protesto social e lirismo não se excluem. E,
de fato, como observou Eduardo de Assis Duarte:
“o conflito que move o
romance é basicamente folhetinesco: pobres contra ricos, fracos contra fortes,
pequenos marginais contra a sociedade opressora. O insólito do folhetim se
materializa nos rostos angelicais, porém malvados; nos gestos inocentes
encobrindo ou propiciando o roubo, a trapaça, o estupro. A violência, elemento
caro ao roman-feuilleton, decorre do quadro de enfrentamento
social vivido pelo protagonista e ser grupo. Ela é muitas vezes gratuita,
outras tantas necessária ou mesmo ‘justa’., segundo o código de valores da
narrativa. Todavia sempre choca, visando a provocar emoções primárias de
terror, piedade ou admiração. A violência é meio de ação dos
mocinhos-bandidos, mas é também fim nas
típicas atitudes de vingança do aparelho repressivo: sede, fome, espancamento,
clausura…Em todo o texto, é enfatizado o sentido melodramático de pureza
infantil ‘abandonada e perseguida’ no labirinto da cidade degradante e
degradada”. [1]
Em Jubiabá, seu
romance anterior, Jorge Amado já revelara talento ao misturar poesia com
documento, como assinalou Antonio Candido. Lirismo e crítica social
também andam juntos em Capitães da Areia, onde não faltam peripécias romanescas,
aventuras de toda sorte, e um pendor à idealização de tipos humanos humildes e
desvalidos.
O que mais me comoveu ao reler esse livro não foi sua
explícita mensagem ideológica, sobretudo no desfecho, em que alguns meninos,
agora jovens e quase adultos, empenham-se “a mudar o destino dos pobres”. O
mais impressionante na vida dessas “cinqüenta crianças sem pai, sem mãe, sem
mestre” é a sede de amor e ternura, o desejo recorrente e desesperado de
pertencer a uma família e conquistar um lugar digno na sociedade. É
difícil não se comover diante do dilema do Sem-Pernas, quando este, com voz de
choro, diz que é um aleijão, não quer ser malandro, e pede abrigo na casa de
dona Ester, casada com um advogado rico. Ao ver o menino, a mulher do advogado
se sensibiliza, relembra o filho morto, e acolhe Sem-Pernas. O plano de
assaltar a casa é adiado porque o menino é tratado pelo casal com carinho e
regalias, como se fosse um filho querido. E pela primeira vez o Sem-Pernas
pensa em trair os amigos:
Antes de tudo estava a lei do grupo, a lei dos Capitães
da Areia. Os que a traíam eram expulsos e nada de bom os esperava no mundo. E
nunca nenhum a havia traído do modo como o Sem-Pernas a ia trair. Para virar
menino mimado, para virar uma daquelas crianças que eram eterno motivo de
galhofa para eles. Não, não os trairia. Teriam bastado três dias para ele
localizar os objetos de valor da casa. Mas a comida, a roupa, o quarto, e mais
que a comida, a roupa e o quarto, o carinho de dona Ester tinham feito que ele
passasse já oito dias. Tinha sido comprado por esse carinho como o estivador
fora comprado por dinheiro. Não, não trairia. Mas aí pensou se não ia trair
dona Ester. Ela confiara nele. Ela também na sua casa tinha uma lei como os
Capitães da Areia: só castigava quando havia erro, pagava o bem com o bem.
Lembrou-se que das outras vezes, quando dava o fora de uma casa para ela ser
assaltada, era uma grande alegria que o invadia. Desta vez não tinha alegria
nenhuma. Seu ódio para todos não desaparecera, é verdade. Mas abria exceção
para a gente daquela casa, porque dona Ester o chamava de filho e o beijava na
face. O Sem-Pernas luta consigo mesmo. Gostaria de continuar naquela vida. Mas
que adiantaria isso para os Capitães da Areia? E ele era um deles, nunca
poderia deixar de ser um deles porque uma vez os soldados o prenderam e o
surraram enquanto um homem de colete ria brutalmente. E o Sem-Pernas se
decidiu. Mas olhou com carinho as janelas do quarto de dona Ester e ela, que o
espiava, notou que ele chorava…(pp. 119-120)
E isso independe da cor e
do sexo dos personagens. Pedro Bala, o chefe dos Capitães, e Dora, a única moça
do bando, são loiros. Ao contrário do que muitos leitores tendem a pensar,
Jorge Amado não faz a apologia do negro nem da cultura africana da Bahia.
As crianças deste romance são brancas, morenas, negras, mestiças. E uma delas,
o Gringo, é filho de imigrantes estrangeiros. O que as une é a miséria, a razão
de existir, a luta tenaz contra tudo e todos, contra a cidade que se torna uma
inimiga. Nesse sentido, Capitães da Areia é
um romance sobre o desamparo e o abandono de crianças, não apenas nordestinas.
O Professor encontra um mecenas que manda o jovem artista para o Rio, onde
pintará quadros sobre o bando a que pertencera. Pirulito, ajudado por um padre
amigo e protetor dos Capitães, será frade capuchinho numa vila do alto sertão.
Poucos conseguem sair das ruas e da delinquência, mas todos anseiam por uma
vida melhor e mais digna, mesmo sabendo que será muito difícil alcançá-la.
Em várias passagens Jorge Amado explora possibilidades de
redenção, de sonho, ou de utopia, para usar uma palavra do título do livro de
Eduardo de Assis Duarte. Uma cena em que mais de cem crianças brincam no
carrossel de Nhozinho França é exemplar:
“O sertanejo trepou no carrossel, deu corda na pianola e
começou a música de uma valsa antiga. O rosto sombrio de Volta Seca se abria
num sorriso. Espiava a pianola, espiava os meninos envoltos em alegria. Escutavam
religiosamente aquela música que saía do bojo do carrossel na magia da noite da
cidade da Bahia só para os ouvidos aventureiros e pobres dos Capitães da Areia…
Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos
outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e
agora tinham o carinho e o conforto da música. Volta Seca não pensava com
certeza em Lampião neste momento. Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe
de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no mar, onde os
sonhos são todos belos.” (p. 59)
A brincadeira no carrossel é uma pausa na vida arriscada
e marginal, uma entrega à magia e ao sonho da infância. A música – “uma valsa
velha e triste, já esquecida por todos os homens da cidade” – tem o poder de
irmanar as crianças e de devolver a elas um pouco de alegria. Ao mesmo
tempo é uma possibilidade de conquistar a liberdade, ainda que provisória. O
narrador alterna esses momentos de lirismo com cenas dramáticas, deixando em
suspense ou adiando o desfecho de várias aventuras que vão sendo tramadas ao
longo da narrativa. Um dos pontos altos do romance é a captura de Pedro Bala.
Preso e depois conduzido ao Reformatório de Menores Abandonados e Delinqüentes,
o chefe dos Capitães é espancado e trancado numa cafua. Com fome e sede, jogado
nas trevas de uma “solitária”, Pedro Bala evoca a vida infeliz dos capitães da
areia, sua paixão por Dora, o sofrimento e a humilhação da menina confinada no
Orfanato Nossa Senhora da Piedade.
Mais de setenta anos
depois da primeira edição, Capitães da Areia continua
a ser lido não apenas como um registro social de uma época e de um lugar
específico, mas também como uma obra literária que habilmente soube evocar um
drama humano que ainda perdura.
[1] Duarte,
Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia,
Rio de Janeiro, Record, pp. 114-116.
*Posfácio de Capitães da Areia, edição da Companhia das Letras