segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Posfácio De Milton Hatoum no livro Capitães da Areia




“Em 1937 Capitães da Areia foi censurado e depois queimado em Salvador”, disse minha professora de português, quando eu estudava no Ginásio Amazonense Pedro II, em Manaus.
A frase da professora aumentou a curiosidade dos estudantes por este romance, um dos livros obrigatórios do curso de literatura brasileira. Por sorte, a leitura deu prazer aos jovens leitores. Agora, ao reler a história dos meninos do trapiche, encontrei o mesmo deleite, mas com outro olhar: o leitor de 1966 não é o mesmo de 2008.
É surpreendente a atualidade dos temas de Capitães da Areia. O assunto e as questões sociais que o livro explora em profundidade são, em larga medida, os mesmos da “cidade da Bahia” e de muitas outras cidades, do Brasil e da América Latina. Lido hoje, este romance ainda comove e faz pensar nas crianças desvalidas, nas crianças de rua, nas crianças abandonadas, quase todas órfãs de pai e mãe, filhos da miséria e do abandono. Atiradas à marginalidade, elas roubam e cometem outros delitos para sobreviver. Detidas, são submetidas à humilhação, ao castigo, à tortura.
A meu ver, este romance de Jorge Amado antecipou de um modo lúcido e incisivo a vida das crianças que esmolam nas ruas das cidades brasileiras. E essa é uma das mensagens mais poderosas de Capitães da Areia. Hoje, a violência urbana tem uma relação estreita com o tráfico de drogas, enquanto os meninos desta obra de ficção furtam para sobreviver. Mas até certo ponto, as raízes do problema são as mesmas: a ausência da família e da escola, agravada pela vida degradante nas favelas e cortiços de tantas cidades.
Como ocorre em Jubiabá e outros romances de denúncia social, Jorge Amado construiu um microcosmo ficcional. Em Capitães da Areia, os personagens mais relevantes são meninos de 5 a 15 anos. Eles moram num velho trapiche abandonado no cais de Salvador, a “Cidade da Bahia” que eles tanto conhecem em suas andanças e aventuras de vagabundos. Nesta cidade hostil, eles só podem contar com dois amigos: um padre e uma mãe-de-santo. Não há traição entres os pivetes do bando. Tudo é regido por “uma lei e uma moral”, por códigos de lealdade e solidariedade. O leitor acompanha a trajetória de vida do Sem-Perna, um menino manco que se vale do defeito físico para ser acolhido em casas de ricos, que depois serão assaltadas. Pirulito, “alto e muito magro, cara seca e amarelada, com ar de asceta”, é uma criança devota que coleciona imagens de santos e sonha em ser padre. Volta Seca, afilhado de Virgulino Lampião, almeja entrar no cangaço para vingar a morte da mãe. João José, o Professor – ladrão de livros e o único menino letrado –, lê histórias de aventuras e desenha o rosto de pessoas para ganhar uns trocados. Gato, “o elegante do grupo”, apaixona-se por uma prostituta, com quem mantém uma relação duradoura; e o chefe dos Capitães, Pedro Bala, é filho de um líder de estivadores, assassinado durante uma greve dos doqueiros. Os capítulos breves lembram os de um folhetim, em que protesto social e lirismo não se excluem. E, de fato, como observou Eduardo de Assis Duarte:
“o conflito que move o romance é basicamente folhetinesco: pobres contra ricos, fracos contra fortes, pequenos marginais contra a sociedade opressora. O insólito do folhetim se materializa nos rostos angelicais, porém malvados; nos gestos inocentes encobrindo ou propiciando o roubo, a trapaça, o estupro. A violência, elemento caro ao roman-feuilleton, decorre do quadro de enfrentamento social vivido pelo protagonista e ser grupo. Ela é muitas vezes gratuita, outras tantas necessária ou mesmo ‘justa’., segundo o código de valores da narrativa. Todavia sempre choca, visando a provocar emoções primárias de terror, piedade ou admiração. A violência é meio de ação dos mocinhos-bandidos, mas é também fim nas típicas atitudes de vingança do aparelho repressivo: sede, fome, espancamento, clausura…Em todo o texto, é enfatizado o sentido melodramático de pureza infantil ‘abandonada e perseguida’ no labirinto da cidade degradante e degradada”. [1]

Em Jubiabá, seu romance anterior, Jorge Amado já revelara talento ao misturar poesia com documento, como assinalou Antonio Candido.  Lirismo e crítica social também andam juntos em Capitães da Areia, onde não faltam peripécias romanescas, aventuras de toda sorte, e um pendor à idealização de tipos humanos humildes e desvalidos.
O que mais me comoveu ao reler esse livro não foi sua explícita mensagem ideológica, sobretudo no desfecho, em que alguns meninos, agora jovens e quase adultos, empenham-se “a mudar o destino dos pobres”. O mais impressionante na vida dessas “cinqüenta crianças sem pai, sem mãe, sem mestre” é a sede de amor e ternura, o desejo recorrente e desesperado de pertencer a uma família e conquistar um lugar digno na sociedade.  É difícil não se comover diante do dilema do Sem-Pernas, quando este, com voz de choro, diz que é um aleijão, não quer ser malandro, e pede abrigo na casa de dona Ester, casada com um advogado rico. Ao ver o menino, a mulher do advogado se sensibiliza, relembra o filho morto, e acolhe Sem-Pernas.  O plano de assaltar a casa é adiado porque o menino é tratado pelo casal com carinho e regalias, como se fosse um filho querido. E pela primeira vez o Sem-Pernas pensa em trair os amigos:
Antes de tudo estava a lei do grupo, a lei dos Capitães da Areia. Os que a traíam eram expulsos e nada de bom os esperava no mundo. E nunca nenhum a havia traído do modo como o Sem-Pernas a ia trair. Para virar menino mimado, para virar uma daquelas crianças que eram eterno motivo de galhofa para eles. Não, não os trairia. Teriam bastado três dias para ele localizar os objetos de valor da casa. Mas a comida, a roupa, o quarto, e mais que a comida, a roupa e o quarto, o carinho de dona Ester tinham feito que ele passasse já oito dias. Tinha sido comprado por esse carinho como o estivador fora comprado por dinheiro. Não, não trairia. Mas aí pensou se não ia trair dona Ester. Ela confiara nele. Ela também na sua casa tinha uma lei como os Capitães da Areia: só castigava quando havia erro, pagava o bem com o bem. Lembrou-se que das outras vezes, quando dava o fora de uma casa para ela ser assaltada, era uma grande alegria que o invadia. Desta vez não tinha alegria nenhuma. Seu ódio para todos não desaparecera, é verdade. Mas abria exceção para a gente daquela casa, porque dona Ester o chamava de filho e o beijava na face. O Sem-Pernas luta consigo mesmo. Gostaria de continuar naquela vida. Mas que adiantaria isso para os Capitães da Areia? E ele era um deles, nunca poderia deixar de ser um deles porque uma vez os soldados o prenderam e o surraram enquanto um homem de colete ria brutalmente. E o Sem-Pernas se decidiu. Mas olhou com carinho as janelas do quarto de dona Ester e ela, que o espiava, notou que ele chorava…(pp. 119-120)
E isso independe da cor e do sexo dos personagens. Pedro Bala, o chefe dos Capitães, e Dora, a única moça do bando, são loiros. Ao contrário do que muitos leitores tendem a pensar, Jorge Amado não faz a apologia do negro nem da cultura africana da Bahia.  As crianças deste romance são brancas, morenas, negras, mestiças. E uma delas, o Gringo, é filho de imigrantes estrangeiros. O que as une é a miséria, a razão de existir, a luta tenaz contra tudo e todos, contra a cidade que se torna uma inimiga. Nesse sentido, Capitães da Areia é um romance sobre o desamparo e o abandono de crianças, não apenas nordestinas. O Professor encontra um mecenas que manda o jovem artista para o Rio, onde pintará quadros sobre o bando a que pertencera. Pirulito, ajudado por um padre amigo e protetor dos Capitães, será frade capuchinho numa vila do alto sertão. Poucos conseguem sair das ruas e da delinquência, mas todos anseiam por uma vida melhor e mais digna, mesmo sabendo que será muito difícil alcançá-la.
Em várias passagens Jorge Amado explora possibilidades de redenção, de sonho, ou de utopia, para usar uma palavra do título do livro de Eduardo de Assis Duarte. Uma cena em que mais de cem crianças brincam no carrossel de Nhozinho França é exemplar:
“O sertanejo trepou no carrossel, deu corda na pianola e começou a música de uma valsa antiga. O rosto sombrio de Volta Seca se abria num sorriso. Espiava a pianola, espiava os meninos envoltos em alegria. Escutavam religiosamente aquela música que saía do bojo do carrossel na magia da noite da cidade da Bahia só para os ouvidos aventureiros e pobres dos Capitães da Areia… Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e o conforto da música. Volta Seca não pensava com certeza em Lampião neste momento. Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no mar, onde os sonhos são todos belos.” (p. 59)
A brincadeira no carrossel é uma pausa na vida arriscada e marginal, uma entrega à magia e ao sonho da infância. A música – “uma valsa velha e triste, já esquecida por todos os homens da cidade” – tem o poder de irmanar as crianças e de devolver a elas um pouco de alegria.  Ao mesmo tempo é uma possibilidade de conquistar a liberdade, ainda que provisória. O narrador alterna esses momentos de lirismo com cenas dramáticas, deixando em suspense ou adiando o desfecho de várias aventuras que vão sendo tramadas ao longo da narrativa. Um dos pontos altos do romance é a captura de Pedro Bala. Preso e depois conduzido ao Reformatório de Menores Abandonados e Delinqüentes, o chefe dos Capitães é espancado e trancado numa cafua. Com fome e sede, jogado nas trevas de uma “solitária”, Pedro Bala evoca a vida infeliz dos capitães da areia, sua paixão por Dora, o sofrimento e a humilhação da menina confinada no Orfanato Nossa Senhora da Piedade.
Mais de setenta anos depois da primeira edição, Capitães da Areia continua a ser lido não apenas como um registro social de uma época e de um lugar específico, mas também como uma obra literária que habilmente soube evocar um drama humano que ainda perdura.


[1] Duarte, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia, Rio de Janeiro, Record, pp. 114-116.

*Posfácio de Capitães da Areia, edição da Companhia das Letras

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