terça-feira, 17 de maio de 2011

Artigo: A solidariedade de Jorge Amado por Eduardo Portella



A obra de Jorge Amado remonta àquele tempo de “gestação de cidades”, tão precisamente reconstituído em O menino Grapiúna, até chegar ao impasse urbano, quando “a liberdade, a invenção e o sonho”, antigas legendas plebiscitárias, parecem agonizar, enredadas no cortejo dissoluto da modernidade.

É exatamente aí, na linha divisória de uma prolongada travessia, que a palavra de Jorge Amado se alarga. A vida afetiva recupera o seu protagonismo, para espanto e desagrado de todas as tecnocracias. A vida, sob a propagação radical do amor, e a morte, expansão natural da vida, cortejam e confrontam todo um conjunto de paixões. E a razão apaixonada, que desenha o seu perfil recorrendo à dialética do carnaval, implica a uma só vez gratificação e repressão, luzes e cinzas, erotização e tanatização. Reduzir essa multiplicidade corresponderia a liquidar o próprio vigor da festa.

Jorge Amado é, ainda, ou sobretudo, o narrador (no seu dizer) dos “despossuídos”, das margens – dos sem poder. Ele descreve esses movimentos tensos e partidos, das periferias, dos guetos, das orlas sociais – as extremidades, os coágulos, os traços banidos - , sem abandonar-se ao esforço inútil das compensações. O bloqueio social logo se erigiu em causa da violência. As imagens precoces dos retirantes, dos pescadores sem bússola, dos primeiros pivetes, de vagabundos e prostitutas, desmontam, ao perceber a emboscada com que se confundem as relações interpessoais, os esquemas institucionalizados de dominação.

Nessa hora o herói se torna pícaro, a figura do líder ou comandante submerge na paróquia que formou. Avança um revezamento de lugares e papéis. O carisma individual se desloca, e passa, sob os auspícios da sensualidade, do onírico, do maravilhoso, do fantástico, a emergir das interdições. Muito teríamos de falar sobre essas eclosões mágicas.

As cenas abertas, os personagens naturais, constituem fontes de descompressão ideológica. Mais do que predicar, Jorge Amado joga. E o jogo é a antiideologia, o céu sem limites. Talvez porque o romancista sabe reconhecer-se: “algo que sou do patrulhamento de todas as ideologias, de todos os radicalismos ortodoxos” (O menino Grapiúna, pág. 103). Desideologizar se fez sinônimo de realizar.

É a realidade que legitima a literatura. Porque nela se encontram e se desencontram os homens e as coisas, e por causa deles a razão e a desrazão, o trabalho e a interação, a vigília e o sonho, a dominação e a liberdade – presente, passado e futuro. Quando a ideologia, em vez da linguagem, fala pela realidade, verifica-se uma redução destrutiva. O discurso multicentrado, no entanto, consegue dizer que a língua mobilizada sob a forma informal da fala já é linguagem.

E a linguagem desfascistiza a língua, subverte as montanhas binárias, supera o canibalismo ideológico, promove a instauração. O escritor não deve ser visto como o advogado inflamado de todas as desditas comunitárias. Ele é, antes de tudo, um produtor de linguagens, que são vidas. E é no modo pelo qual as desgraças de uns se erguem na linguagem de outros, que o escritor decide a sua sorte.

Nesse encalço, Jorge Amado lança mão de todas as estratégias possíveis e imagináveis. Deus e o demônio são chamados para endossar o espetáculo persuasivo. Quando tem de optar entre a sedução e o domínio, o romancista baiano jamais vacila. A sedução se apresenta como a única conquista não autoritária. É fácil entender o neo-barroco persistente, ou aquele repúdio ao narrador esquálido, certamente impelido pela cultura que não somos.

O desempenho interativo do escritor nacional Jorge Amado mantém-se basicamente à distância das armadilhas da nossa cultura hegemônica: antes ao lado da nação, que do poder.

Abre passagem para as pulsões de vida reprimidas, as linguagens desvalorizadas, os segmentos societários proscritos – as crenças e as superstições do povo brasileiro. A comunicabilidade incomparável de Jorge Amado decorre dessa solidariedade radical que emana de seu discurso.


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 18/10/2006

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